Israel retirou soldados da Faixa de Gaza nesta terça-feira, num aparente arrefecimento do conflito com o Hamas. Em quase um mês, Israel matou mais de 1,8 mil palestinos no território, uma maioria de não-combatentes, dos quais pelo menos 300 crianças. Dos escoriados aos amputados, dos que já tiveram alta aos que ainda não saíram do leito, os feridos somam 10 mil. Do lado israelense, morreram 64 soldados e três civis.
Os números são assustadores, e não permitem subestimar o caos infligido às vidas dos palestinos de Gaza: de acordo com as Nações Unidas, pelo menos 260 mil pessoas, numa população de 1,8 milhão, tiveram que deixar suas casas. Ao ver as fotos de famílias inteiras jogadas à rua, lembro de Yigal Palmor.
Há duas semanas, o porta-voz do ministério das Relações Exteriores de Israel, Yigal Palmor, criticou a decisão do governo brasileiro de chamar de volta para consultas o embaixador em Tel Aviv. No comunicado da decisão, a diplomacia brasileira havia condenado “energicamente o uso desproporcional de força por Israel na Faixa de Gaza”. Numa réplica das mais toscas, Palmor soltou a pérola já famosa, em entrevista à TV Globo:
A resposta de Israel é perfeitamente proporcional de acordo com a lei internacional. Isso não é futebol. No futebol, quando um jogo termina em empate, você acha proporcional e quando é 7 a 1 é desproporcional. Lamento dizer, mas não é assim na vida real e sob a lei internacional.
“Não é assim na vida real”, disse Palmor, que, na vida real, tem como chefe Avigdor Lieberman, um homem que clamou pelo julgamento e execução de seus colegas árabes no Parlamento de Israel.
Para Palmor, o futebol está fora do rol dos assuntos sérios, mas o fato é que devemos, às vezes, insistir no futebol para revelar a tal “vida real”. Isso pois o futebol reage ao ambiente social, e é parte dele. No jogo e em torno do jogo, estoura muito da sociedade. Não é diferente nos territórios palestinos sob cerco, estrangulamento e ocupação, e nem em Israel. Senão, vejamos:
Na primeira semana de julho, a polícia de Israel prendeu, de acordo com a revista americana Tablet, seis torcedores do Beitar Jerusalém acusados de envolvimento na morte de um palestino de 16 anos de idade. Muhammad Hussein Abu Khdeir foi queimado vivo nos arredores de Jerusalém, em represália pelo sequestro e assassinato de três jovens israelenses na Cisjordânia. Os seis suspeitos, ainda segundo a Tablet, conheceram-se pela afinidade com o Beitar, time famoso por nunca ter contratado um jogador árabe.
O assassinato de Abu Khdeir representou mais um degrau numa escalada de tensão que descambou no disparo de mísseis pelo Hamas e no bombardeio da Faixa de Gaza por Israel. Num desses bombardeios, morreu o goleiro da seleção Sub-17 da Palestina, Ahmed Abu Sida. Noutro, morreu Ahed Zaqout, ex-jogador e atual apresentador da TV, considerado um dos melhores meio-campistas do da história do futebol local. No episódio mais conhecido, as vítimas foram quatro menores da mesma família, que jogavam bola numa praia – nenhum deles tinha mais de 15 anos.
Tudo isso começou em 8 de julho, quando o mundo falava de Copa e da derrota brasileira por 7 a 1 naquele mesmo dia – a derrota citada por Yigal Palmor, célebre cavalgadura. Passou-se desde então menos de um mês, menos de um mês em 47 anos de uma ocupação que é, para além dos surtos e explosões, uma guerra contra o cotidiano.
O “cotidiano”, ou “a vida real”, de Palmor: nele, nela, o futebol é o esporte favorito dos palestinos. Em dias como hoje, jogar uma pelada numa praia de Gaza implica perigo. Noutros dias, menos nervosos, atuar em nível profissional ou semiprofissional nos territórios palestinos exige persistência. A combinação de ataques à infraestrutura esportiva, bloqueios em estradas e eventuais detenções de atletas naquelas terras fazem o futebol brasileiro parecer fácil. Nenhuma federação afiliada à Fifa enfrenta tantas barreiras para organizar competições e reunir seleções como a palestina, tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza.
Mesmo, assim “na vida real”, a seleção palestina classificou-se maio para a Copa da Ásia, a ser realizada em 2015 na Austrália. Foi a primeira vez na história que o país atingiu tal feito, alcançado em parte com o reforço de atletas da diáspora.
Reportagem de: 06.08.2014
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